Ali, naquele canto escuro, alguma coisa balançava as patas sem propósito, sabendo que nada importava tanto na vida.
"Só uma geração desiludida poderia se entusiasmar por uma visão tão negativa da história. Só da história? Da existência em geral. É preciso ter a coragem de reconhecer que a vida não resiste a uma interrogação séria e que é difícil, e mesmo impossível, atribuir um sentido ao que visivelmente não comporta um. Por outro lado, nem que seja por gosto do paradoxo, podemos ser seduzidos por esse naufrágio, pela amplidão, pelo brilho do nada de tudo o que vive." (Emil Cioran - Silogismos da Amargura)
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
Memórias
Um gato se rebatia no asfalto. As patas feridas apenas se balançavam de um lado para o outro sem mover o corpo esmagado do lugar. Seven passava despercebido na TV. O gosto do vinho impregnava a garganta e amarrava a boca, enquanto os corpos semi-conscientes caídos no sofá eram pequenos suspiros cansados, nada mais. Para além dos pequenos grunhidos que o sono produz, o pouco de consciência que ainda se manifestava era apenas vontade. Uma vontade ignorante e silenciosa. Nada falava. Podia-se, porém, quase ouvir um pequeno desejo no braço dormente que não ousava se mexer. Nas mãos que se entrelaçavam distraídas pela mistura dos cheiros de coco e de colônia. Um gato se rebatia no asfalto. Ele também, de consciência só tinha a vontade. De sair dali, de se mover pra qualquer lugar. De se permitir sentir a dor do que havia machucado. Mas o asfalto não parava. Sombras, rodas e roncos o atravessavam rapidamente de todos os lados, como se aquilo fosse toda a vida. Ouviu-se um tiro. Na TV se encaravam policial e bandido e uma espécie de aconchego se espalhava pela sala. Como se todas as peças estivessem encaixadas em seu devido lugar temporário. Como se o vinho finalmente pertencesse. Nada era necessário além daquele pequeno suspiro ou da mão que deslisava a outra casualmente pela seda. Como se isso tudo, também, fosse a vida toda. Ainda assim, alguma coisa ali mesmo se rebatia. Um acender da memória. A verdade de relance. Distorcida.
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